domingo, 25 de abril de 2010

A Sábia

Venho de muito longe. Lá de mil novecentos e oitenta e pouco. Agora com pele branca, pálida até, os cabelos acinzentados presos com grampo caminho lentamente a descer as escadas. Todo dia é assim: às sete horas da manhã subo e às onze e meia da noite eu desço. Já não uso o velho salto que me deram lembranças de eternos calos, nos pés me acompanham umas sandálias vindas do nordeste. Bem de lá, da terra seca, onde até choro é motivo de alegria por se tratar de água. Pois bem, as sandálias são dessas mesmas de dedo, na cor barro, que horrivelmente não combina com nada. Mas já sou de muita idade, pouco me importa a combinação a seguir. As pernas já não são mais as mesmas de vinte anos atrás. Agora, cerca-me toda de veias finas avermelhadas e azuis, bem que fiz uma cirurgia quando estava com meus quase vinte anos. Mas não teve jeito a escadeira retroagiu a tudo. E sei bem que não fora só a escadaria que deixaste a em depressão. Foi o peso também.Já pensaste na quantidade de coisas que já carregamos em nossa vida? Junte tudo isso concentrado numa só pessoa. Num só corpo. Não, ainda não sou obesa. Sou uma senhora ainda muito regrada pelas éticas de jejuar a cada dia. Mas o peso que digo é esse mesmo. O coração pesa. A cabeça pesa. O cansaço pesa. Até a Dona Esperança pesa. Pesa sim senhor, a esperança pode parecer a muitos alguns, muito sutil e sentinela como sonhos. A esperança é sempre a nossa vontade centralizada nos nossos próprios desejos. Mas de orgulho, faço questão de dizer. Sou uma senhora nada, nada egoísta. A esperança que carregava, ou que ainda por certo carrego é de não exista mais degraus. Isso mesmo. D-E-G-R-A-U-S. Mas não dá. Suplico: essas escadas estão me matando. Eu tenho pressa, tenho fome, tenho sede, tenho medo do escuro que segue aqui, e tudo que posso fazer, á caminhar calmamente. Lentamente, até por que, os degraus estão cheios de pedras. É. Essas mesmas. Estão reformando a casa duzentos e cinqüenta e nove, e todo dia é isso: esse vai e vem de material de construção.
Meus pés fielmente tomaram nojo de escadas. Cansa, tira o fôlego, doem as pernas, os joelhos, e sem contar que o moço da cadeira de rodas que sofre um bocado, não sai de casa há semanas, talvez meses, mora logo ali, abaixo da escadaria que tem exatos sessenta e nove degraus. Isso, 69. Contei todinhos. Ainda sei contar. Tenho memória boa para números, queria é mesmo ter tido educação e ter estudado como minha mãe sempre me disse que devia fazer, mas não, fui além. Era bem assim, estávamos saindo do período de ditadura aqui no Brasil. A liberdade se programava a tudo. Foi lá, bem no finzinho dos anos oitenta que as coisas se modernizaram. Comecei a trabalhar cedo, muito cedo. Queria mesmo ter estudado matemática. Mas tenho dons para costura, de certo que me especializei em culinária e pediatria. Daqui a pouco vou fazer o prato mais típico aqui do Brasil: arroz e feijão. Todo dia alias é assim, arroz e feijão, arroz e feijão. Quando sobra um trocado, tem macarronada, mas é luxo demais para as crianças que pari. Isso mesmo foram todos partos normais, dos cinco, e de cocas. Mas não é nada fácil entender de economia, de contas, de pediatria, de advocacia, de gastronomia, de astronomia, dá um trabalho danado se formar nessa profissão aqui. Não sei se podemos dar o luxo de dizer que é profissão “dar”. Não. Não sou garota de programa, nem nunca me dei a qualquer um por valor qualquer que seja. Sou muito é correta, e não me dou o pudor de olhar para outro homem. Mesmo sabendo que Antonie, está muito longe daqui. Sei que logo, logo o encontro, mas aprendi desde mais novinha, que nada é por acaso, e que tudo, tudinho nessa vida, tem seu tempo.