domingo, 29 de março de 2009

Maria vai com as outras

Se me lembro bem, foi no tempo das perninhas cinzentas, com os dentes ainda por crescer que virei uma admiradora de flores.
Lá nas ruas do Paraíso, eram as ruas das mais floridas possíveis. Eu nunca vi igual. Era incrível, e quase que inacreditável. As casas mais pareciam jardins e pareciam floriculturas. E quase todas, tinham flores de todos os tipos, e de todas as cores. As minhas preferidas eram as maria vai com as outras de cores amarelas e violetas e as rosas vermelhas. Tinha uma casa no caminho que sempre fizera para ir ou voltar da escola, que era a minha favorita: Era uma casa pequena, branca, com portas e janelas da cor azul Royal. A casa era de esquina, lembrava as casas Londrinas. A casa era linda. Mal dava para ver suas cercas, pois as flores, as folhas e os galhos das flores e folhas ficavam expostos, cobrindo qualquer cerca que pudesse ficar a vista. Parecia que tinha sido de propósito, coisa de artista, aquelas folhas caídas como a água caindo de um chafariz em foto. Parecia.
Eu adorava aquelas flores. Adorava as marias vai com as outras. E elas realmente iam com as outras: iam comigo. Eu adorava roubar aquelas flores. Aquelas flores amarelas e violetas. Já as vermelhas eram de outra casa, e as vermelhas não eram “Marias”, eram “Rosas”, e as rosas eram mais difíceis de roubar. As Marias violetas e as amarelas mais expostas, eu tinha mais fácil: Todos os dias, eu carregava uma. E todos os dias minha mãe me questionava de onde vinham aquelas meninas, as moças Marias. Eu sempre respondera: - Elas que quiseram vir comigo, mamãe! Respondia. Dizia para eu tomar cuidado, pois os donos das flores podem se zangar.
E eu: - Mas eles não vão me ver, eu tomo cuidado.
Colocava a Maria num copo com água, e no dia seguinte, ela sempre amanhecia triste, murcha. Isso era uma motivação para trazer outras. E sempre trazia. Mas não era a posse que me encantava. Eram suas cores; suas simples cores. Ah, a flor amarela e a flor violeta ficavam lindas no copo, ficavam lindas presas no cabelo, no pé da orelha; Era coisa de menina, mas me encantava com as Marias.
Sempre ficava de olho num pé de roseiro de rosas vermelhas, que tinha no jardim na rua de cima de onde morava. Mas, elas estavam presas. Eu tinha dó. Tão belas tão possivelmente cheirosas e presas, atrás daquele portão gigantesco. Com as rosas, era sempre tudo muito lúdico e filosófico.

Teve uma vez, que por certo, as Marias se zangaram comigo, ou não sei bem. Quando passava dessa vez acompanhada com uma prima, confessei a ela, antes de chegar ao local do feixe, que eu gostava de flores, e confessava também que aquelas eram vítimas dos meus roubos.
- Roubo? Vítimas? Pergunta ela.
É Liliane, eu pego uma todos os dias! Pegue esta para você! Eu arranco outra do galho para mim.
Antes que tivesse qualquer palavra para não haver o ato, a Dona da casa saiu pela porta azul Royal. Uma mulher de cabelos curtos, cheios e enrolados; Meio louros, com alguns fios brancos, de vestido branco e detalhes vermelhos e de avental. Eu logo terminei de arrancar o galhinho da Maria, e começa o terror: os gritos.
- Ah, é você! É você quem acaba com meu jardim! Pentelha!
Liliane quase me arranca pelo braço e me faz correr. E na esquina ainda conseguimos ouvir a Dona da casa das Marias dizer: se eu te pegar aqui de novo, eu chamo a polícia!
O coração já acelerado pela correria, e escuto alguém me ameaçar a polícia. Meu Deus. Eu tão piralha, como disse a Dona da casa, tão pentelha, ainda não estava preparada para isso, para os direitos dos adultos. Enquanto desamassava as marias de minhas mãos, Liliane falava, me dava sermão, ria de mim e contara tudo para Dona Margarida, a moça que disse para eu tomar cuidado: minha mãe. Ouvi tudo calada, é claro. Mas não me recordo do que foi dito. E nem faço questão. Só me dava rancor, tristeza em ter que passar em frente à casa das marias e não poder ver suas cores de perto. Tê-las em minhas mãos, sentir os seus cheiros estranhos. Depois daquela ameaça submissa, eu tinha medo. Sempre passava do outro lado da calçada, para não ver a Dona da casa de avental, se recordando de mim, e gritando novamente. E elas se transformaram automaticamente nas rosas do rosário: presas, distantes, distintas. É que elas queriam distância de mim.
Demorou a eu acostumar sem elas no meu copo de água. Demorou até para sentir o cheio da rosa vermelha que eu tanto admirava. Eu consegui pegá-la: por certa vez, a casa teve uma reforma, e estava sem o portão, sem as grades. Demorou até a primeira rosa ganhada. Depois, vieram tantas, com tantos cheiros diferentes, com personalidades diferentes, com intenções diferentes.
Teve uma rosa ainda em botão, que amanheceu no meu portão. Foi surpresa a minha cara, a minha face, a minha emoção. Foi surpresa também para Dona Margarida, quando desenhei no corpo uma rosa vermelha. Demorou.
Demorei ainda por desenhá-la de uma forma permanente no meu corpo. Agora, ela esta presa no meu corpo, e não num jardim, atrás de um portão. As flores demonstram sensibilidade; Vida; Lembrança; Saudade. Quem recebe flores, é raro, e quem as - envia, principalmente. Me lembrei: e as flores de plásticos? Ah, elas são de plásticos: não morrem. Me lembrei denovo: a última flor que recebi há duas semanas, é de plástico. Será que isso tem duplo sentido? Não, na verdade não: As flores de plásticos não morrem, porque nunca estiveram vivas.